Arabela Van der Sar chegou ao campus da universidade uma hora atrasada, mas sua entrada foi primorosa. Quem via aquela jovem de descendência holandesa, cabelos loiros longos e esvoaçantes e contemplava seu sorriso deslumbrante nunca imaginaria que a menos de um mês ela tentara tirar a própria vida. Isso mesmo, ela tentou suicidar-se.
A bipolaridade é uma doença que “engana” muitas pessoas pelo simples fato de o paciente não aparentar estar doente. Sempre alegre e sorridente Arabela nunca deixou pistas da depressão profunda na qual se submetia diariamente. Então quando o medo aliou-se a essa depressão a garota foi atraída pela idéia insana da morte. Naquele momento a navalha enferrujada, que havia encontrado junto às coisas do avô falecido há poucos dias, soava como um grito de liberdade “A morte é a mais viável das alternativas. Aquela que talvez nos trará paz. Suicídio. Uma das formas mais comuns de liberdade. E daí se não formos por céu se já conhecemos o inferno.” Ela pensara minutos antes de erguer a navalha e cortar o pulso esquerdo. Com o sangue escorrendo do ferimento aberto pensara mais uma vez “ uma navalha enferrujada, se eu não morrer pelo corte morro pelo tétano” , mas felizmente antes de conseguir cortar o outro pulso alguém bateu à porta a fazendo entrar em desespero “ e se alguém me ver, se tentarem me impedir, se me descobrirem antes de estar morta?Ah. Que se dane!” Ela pensou segurando a navalha com força na mão ensangüentada e foi abrir a porta.
A trilha de sangue que se formava enquanto a garota caminhava, era assustadora. A dor que ela sentia foi encoberta por uma onda súbita de medo. Durante alguns segundos Arabela cogitou a possibilidade de não abrir a porta, mas foi logo interrompida por mais uma batida na madeira grossa e ela continuou seu caminho. Dado mais dois passos ela chegou até a porta, ergueu o braço intacto e girou a maçaneta. Quem ela viu não a ajudou em nada, o garoto parado na porta trazia consigo um imenso sorriso, sorriso esse que foi desfeito assim que ele percebeu o rastro de sangue no chão.
- O que é que você tá tentando fazer?! - o garoto disse olhando para a longa marca de sangue deixada pela garota durante sua “longa” caminhada do quarto até a porta da frente.
- O que você quer? – Arabela respondeu rispidamente a navalha pressionada com força na mão ensangüentada.
- Ué? Não é aqui o show dramático da semana?– ele respondeu atravessando o portal e acomodando-se no pequeno sofá amarelo – Por que está parecendo. –completou ele pondo os pés na mesa de centro que o separava da belíssima garota loira.
- Que se dane!– Arabela pronunciou as palavras mais uma vez antes de erguer a navalha e começar a cortar o segundo pulso. – Dar licença? – ela disse aparentemente incomodada com a presença de um garoto praticamente desconhecido. Na verdade ele era um “colega” de escola, um daqueles com o qual ela nunca havia trocado mais de uma palavra na vida.
- O que? Não gosta de platéia? Corta essa! Ah e pode continuar, quero ver como isso acaba. – Diogo, o garoto, revidou friamente. Seu rosto estava serio, sem nenhuma expressão visível a não ser é claro um vivido interesse pelo fim daquela historia.
Arabela não se abalou com o comentário do amigo, continuou com seu drama particular, até que o ar lhe faltou nos pulmões e ela soltou a navalha deixando o corte do pulso direito pela metade.
- Que, que foi? – Diogo perguntou um pouco desapontado. Então ele viu um pequeno objeto de metal refletindo luz enquanto o corpo da garota despencava no chão. – Ah não! Droga! Não acredito nisso! – ele exclamou enquanto saltava por sobre a mesa de centro e alcançava o corpo da garota caído no chão.
Arabela estava com o rosto mais branco do que o natural, seus lábios pálidos e os braços flácidos. Do pulso esquerdo o sangue escorria incontrolável e pelo direito um fino traço encarnado começava a aparecer. Sem opção aparente, Diogo puxou a toalha da mesa de centro e amarrou-a no pulso de onde o sangue saia mais incontrolavelmente, o tecido branco de linho aos foi poucos adquirindo um tom rubro. O sangue parecia estancado, mas a garota ainda continuava desacordada então ele teve um ultimo reflexo antes de colocá-la no carro para levá-la ao hospital. Abriu uma garrafa de vinho e a colocou na altura das narinas da garota. Aos pouco, com cheiro de álcool invadindo seu sistema respiratório Arabela começava a voltar a consciência, mas apenas o tempo necessário de Diogo levá-la ao hospital.
Quatro horas depois a garota acordou com os braços enfaixados e a cabeça dolorida. À sua frente, Diogo segurava uma fina corrente de ouro na qual um anel dourado balançava vagarosamente prendendo sua atenção por inteiro. Ao observar a cena Arabela tocou instintivamente em seu pescoço e notou que a cordão cujo garoto segurava era o seu, não entendendo a cena abriu a boca para soltar insultos, mas Diogo foi mais rápido.
- Por que você usa esse anel no pescoço e não no dedo? – ele perguntou com os olhos fixos no objeto metálico.
- Não faz mais sentido. – respondeu ela com indiferença.
- Eu não entendo. – Diogo falou movendo os olhos do anel para a garota e analisando profundamente a expressão dura em seu rosto.
- Não precisa.
- Mas eu quero. – revidou ele voltando sua atenção novamente para o anel.
- Por que salvar a minha vida é tão importante pra você? – Arabela perguntou tentando mudar de assunto.
- Não é. – o garoto respondeu friamente.
- Agora EU não entendo.
- Não precisa. – ele respondeu revidando a resposta de Arabela, a garota, no entanto não se importou com isso, chegou até mesmo a esboçar um leve sorriso enquanto analisava o estrago que tinha feito no próprio corpo e que a levara àquela cama de hospital.
- Arabela – o médico pronunciou com uma voz cansada – e então como estar?
- Bem.
- Então já estar pronta para ir para casa?
- Claro! – ela respondeu empolgada.
- Tudo bem, então te darei alta, mas você terá que participar das reuniões semanais no setor psiquiátrico.
- Fala sério! – ela resmungou irritada, perder tempo ouvindo pessoas doidas falarem besteira não estava em seus planos, afinal ela havia passado no vestibular.
- As reuniões são na terça, agora já pode ir. E nada objetos afiados até lá. Diogo você a leva para casa?
- Claro. – ele respondeu largando o cordão e segurando-o no ar com a outra mão.
- Será que dá pra devolver meu cordão? – Arabela perguntou enquanto apoiava-se na cama e erguia-se lentamente.
- Não. – Diogo respondeu com indiferença fazendo com que a garota trincasse os dentes e fechasse os punhos com força.
- Você é muito irritante! – ela resmungou as ataduras começando a adquirir um tom negro.
- Ei vai com calma garota, não faz muito tempo que você acordou. – ele disse segurando-a quando seu corpo desequilibrou-se para frente.
- Arr... – Arabela silabou diante do comentário irônico e levantou-se rapidamente fazendo com que uma onda de vertigem se espalhasse por seu corpo.
- É melhor a gente ir.
- Mais cedo no hospital você disse que não fazia sentido usar o anel, por quê? – Diogo perguntou a Arabela quando já estavam em casa.
- Longa história.
- Adivinha? Tenho a tarde toda.
- Tá bom eu falo, mas depois você responderá às minhas perguntas.
- OK.
- Não faz mais sentido usá-lo por que ele fazia parte de um conjunto que agora estar incompleto. – ela lançou rapidamente.
- Conjunto? Como assim? Existe mais de um anel?
- Sim... e não. Existe mais um, mas não totalmente igual. Como você deve ter percebido esse tem a inscrição “para sempre” em Holandês – ela completou tocando no anel que agora encontrava-se pendurado na altura de seu seio – “Voor altijd” e o outro tem a inscrição “Betere vriend” que significa “melhor amiga” .
- Vocês brigaram e só por isso não usam mais os anéis? Que infantil. – ele concluiu precipitadamente.
- Não, quem dera fosse isso. – Arabela falou, as lagrimas descendo rapidamente por seu rosto fino – Ela morreu. – ela completou deixando o garoto extasiado diante da revelação.
- Descul...
- Tudo bem, já faz tempo. Ela estava em um banco quando ele foi invadido por bandidos que a fizeram refém, durante a fuga houve um disparo e ela não resistiu. O anel não estava no corpo, provavelmente foi roubado. – ela terminou, mas Diogo não falou nada, seu rosto agora estava tão pálido quanto o de Arabela estivera minutos antes de desmaiar, suas mãos suavam e seu coração batia acelerado. A revelação feita pela garota o atingiu em um ponto a muito omitido e as lágrimas começaram a cair desesperadamente de seus olhos. – O que foi?! – a menina perguntou quando notou o estado depressivo no qual Diogo estava.
- Nada. – respondeu ele rapidamente.
- Hum... Por que você salvou a minha vida se ela é tão insignificante para você? – perguntou ela tentando mudar de assunto.
- Eu só... Estava... Retribuindo um favor. – ele disse vagarosamente, enquanto procurava pelas palavras exatas.
- Favor?! Favor a quem?! - Arabela perguntou indignada no exato momento em que sua mãe girava a maçaneta e adentrava a sala de estar.
- O que é isso?! – ela perguntou ao perceber a presença de um garoto em sua casa, na verdade ficou mais surpreendida com a aparência dele do que com o fato de estar lá. Diogo era alto, forte, bronzeado, seus cabelos escuros eram curtos, seus olhos pretos e queixo fino davam-lhe um ar de Bad Boy, mas nem por isso deixavam de ser atraentes.
- Nada, só vim ajudar. – ele começou um pouco constrangido – Já acabei. Tô me mandando. – ele completou enquanto levantava-se e se dirigia devagar em direção a porta.
- Não! Espera! Favor a quem?! – Arabela correu em direção à porta tentando interceptá-lo, mas Diogo foi mais rápido e em questão de segundos atravessou a rua e sumiu em meio às pessoas que passavam por ali.
- Arabela! Meu Deus! O que foi isso! O que aconteceu com seus braços?! – a mãe de Arabela gritava desesperada logo após notar as ataduras que envolviam os punhos da jovem.
- Nada. Longa historia. – ela respondeu impaciente, ainda olhando para rua em busca de algum sinal do garoto que poucos minutos antes estava à sua frente.
A poucos metros da casa de Arabela, Diogo estava encostado em uma árvore. A respiração rápida não se devia apenas ao tempo que passara correndo, mas também as lembranças que vinha e voltavam em sua mente. Ele lembrou-se de todas as noites que passara sem dormir e de mais uma porção que acordara, aterrorizado. Lembrou-se também do envelope empoeirado e que a tanto estava guardado no fundo de sua gaveta e de quantas horas perdera tentando entender o que significava e agora tudo estava claro, claro até demais, tão claro que chegava a ser assombroso e o pior é que ele não sabia como lidar com isso, não sabia o que fazer, pior não sabia como fazer. Ele queria sumir, não ver ninguém por bastante tempo até mesmo a idéia maluca de cortar os pulsos lhe foi bem-vinda, no entanto ele optou pela a mais simples: Sumir, e foi o que fez.
Durante bastante tempo Arabela não teve noticias Diogo e o simples ato de mencioná-lo a irritava, mas o mais irônico era que ela ainda tinha que ir toda terça-feira para as reuniões e quando estava lá a única coisa em que podia pensar era por que ele salvara sua vida, ela sabia apenas o que ele a havia dito “ Estava retribuindo um favor”. Mas favor a quem? Ela nunca trocara mais de uma palavra com ele nem no colégio nem fora do mesmo, então por que a ajudar daquela maneira, por que não simplesmente levá-la ao hospital, e a pergunta que não queria calar: Por que desaparecer? Foram muitas as horas perdidas tentando resolver essas questões talvez essas perguntas fossem o único motivo pelo qual ela ainda estava viva. Com isso as reuniões não foram mais necessárias, o sorriso voltara ao seu rosto e férias acabaram. Agora Arabela estava pronta para começar a faculdade e esquecer tudo que havia passado nos últimos meses, pronta pra enfrentar tudo e todos. “ Ou quase todos” foi o que ela pensou assim que pôs os pés na sala de aula e deu de cara com Diogo. Ele estava ali bem na sua frente, parecia diferente mais maduro ou talvez só mais velho.
- Oi – ele disse com uma voz que mais parecia um sussurro.
- Onde é que você tava?! – Arabela falou com a voz esganiçada.
- Não importa. – Diogo respondeu friamente.
- O que você quer? – a garota perguntou com indiferença, de certa forma estava acostumada com o comportamento do garoto. – Antes de dizer qualquer coisa. Que favor é esse que você retribuiu quando salvou minha vida? – ela completou antes que ele pudesse pronunciar palavra alguma.
- Uma vida em troca de uma vida – ele disse ainda com indiferença, parecia desconfortável em falar com ela depois de tanto tempo.
- Hã?
- Olha, eu nem sabia quem você era até aquele dia, só fui lá por que o professor pediu e por algum motivo eu tinha que tá lá, se fosse qualquer outra pessoa juro que eu não teria me desesperado tanto, mas com você foi diferente eu sabia o que tinha que fazer mesmo sem saber porquê tinha que fazer.
- Mas que favor é esse?! – Arabela continuava a perguntar. A curiosidade dominando sua mente e todos os seus movimentos.
- Você vai saber. Toma. – ele disse enquanto entregava um envelope amassado e de um papel amarelado pelo tempo.
- O que é isso? – ela perguntou confusa.
- Só abra. – Diogo respondeu a meio metro da porta, enquanto Arabela permanecia com os olhos fixos no papel velho. Ela virou-se para fazer mais um pergunta, mas Diogo já havia ido embora, a deixando no meio da sala com um envelope velho.
A curiosidade lhe consumia por inteiro quando Arabela finalmente decidiu abri o estranho envelope, sem remetente, sem destinatário apenas com uma data “03/05/2008”. Ela o abriu, cautelosa, afinal o papel estava bem desgastado. Dentro, um pedaço de papel jazia intacto ela o retirou, o papel parecia mais bem preservado do que o envelope, era totalmente branco a não ser por algumas manchas escuras, e leu a única palavra escrita em uma língua que conhecia muito bem “Exccus” que significa Desculpa em holandês, logo que leu nada fez sentido. Por que ele queria pedir desculpas? Mas então algo cintilou entre o papel e o envelope e ela retirou uma copia perfeita no anel que estava sob a camisa azul que usava, a única diferença visível eram as palavras gravadas no metal frio “Betere vriend”.
Diogo atravessou o pátio da universidade com a cabeça baixa e a mão nos bolsos pegou um taxi e passou todo percurso lembrando-se da ocasião que o assombrou durante tanto tempo e que, naquele dia, ele conseguira resolver.
2 anos antes.
“A agência bancaria estava lotada, na multidão uma bela garota destacava-se alta, esbelta e com um tom de cabelo admirável ela encantava a todos, não tinha mais do que quinze anos, mas agia como uma adulta. Do outro lado um garoto da mesma idade a admirava encantado com tamanha beleza e graça, mas o encantamento foi quebrado pelo som ensurdecedor de tiros e o anúncio de um assalto.
Todos estavam deitados no chão enquanto os bandidos retiravam o dinheiro dos caixas e “confiscavam” objetos pessoais. Minutos depois o barulho de sirene dos carros de policia invadiu o local deixando os ladrões em desespero, diante da situação eles agarraram um dos reféns pelo braço e apontaram a pistola para sua cabeça. A bela garota observava a cena de longe e de um ângulo ruim, mas mesmo assim pode perceber o medo nos olhos do refém então em um ato de extrema coragem ou burrice, como muito comentaram, ela levantou-se e se ofereceu para trocar de lugar com o garoto desesperado.
Os bandidos aceitaram a troca e passaram a usar a garota como escudo, na metade do caminho, porém, algo deu errado e a bela jovem foi baleada. O sangue manchou-lhe toda roupa e ela começou a entrar em pânico, foi confortada por um garoto de mesma idade e que minutos antes estivera nas mãos dos bandidos. Vendo que não iria sobreviver ela escrever em um pedaço de papel somente uma palavra e quando o garoto perguntou-lhe a quem deveria entregar o recado ela lhe entregou um anel dourado no qual a inscrição “Betere vriend” resplandecia .”